Entenda! A bunda de Anitta é
sujeito e não objeto
Tutudum!
Hipnótico o novo clipe de Anitta!
Retomando essa figura meio arquetípica do Brasil, o funk feminino de Anitta
incorporou as questões de gênero conjugando a malandragem com um feminino
plural.
Vai, Malandra, o clipe, traz
verdadeiros memes visuais, culturais e musicais que valem por um tratado
sociológico. Ainda não se escreveu, e faz falta, um tratado sobre os corpos
pensantes das mulheres, para além do imaginário em torno da bunda, da raba, do
bumbum, do traseiro da mulher brasileira, que virou um disparador de
questões sensações! O corpo sexualizado na era da sua ressignificação
pelas próprias mulheres!
Um corpo que o
funk, o samba, o biquíni de fita isolante, toda a cultura solar carioca já vem
dizendo, tem tempo, que não precisa ser apenas objeto e signo de
assujeitamento, toda vez que quiser se exibir.
A bunda (e o corpo
das mulheres) pode se deslocar da objetificação para a subjetivação! A bunda
viva de Anitta com sua celulite sem photoshop é sujeito e não objeto. Se as
mulheres fazem o que quiserem com seus corpos (a Marcha das Vadias explicou
isso para a classe média), elas podem inclusive se “autoexplorarem”, ensina o
funk. A bunda ostentação de Anitta no início do clipe já aponta para esse
outro feminismo (de
mulheres brancas, apenas? Acho que não!)
Sabemos que o feminismo negro questiona, e com muitas razões, o
feminismo branco liberal. Pois a emancipação do corpo as vezes se confunde com
sua exposição e objetificação, para um grupo em que racismo e sexismo
significaram a exploração violentíssima do corpo exposto e hipersexualizdo da
mulher negra servindo ao gozo de seus algozes. Mas é sempre assim?
Foram as mulheres do
funk (Tati Quebra Barraco, Deise Tigrona, Anitta etc.) e depois as meninas
pretas do rap e do pop (de Nega Gizza a Karol Conka) que vem fazendo essa outra
política, esse outro feminismo, na marra. Expondo seus corpos de maneira ativa,
muitas vezes escandalosa, falando de desejo, sexualidade, multi parceiros,
posições sexuais, motel, masturbação, corpo gordo, celulite, beleza negra, sexo
anal, oral, sexismo, patriarcalismo, gozo, de forma explícita e desencanada.
Leila Diniz (mulher
branca da Zona Sul) virou musa pelo seu comportamento libertário, que agradava
mulheres e homens, mas existe toda uma linhagem outra das mulheres negras e
brancas periféricas que ainda são consideradas “vulgares” quando assumem sua
virilidade. E fato é que essas mulheres da periferia meteram o pé, entraram nas
universidades e hoje temos entre as novas divas contemporâneas, de Anitta
até uma jovem negra universitária, fashion e filósofa, como Djamila Ribeiro e
outras mulheres incríveis e lacradoras, como se diz.
Mas voltemos ao corpo.
A “surra de bunda” que Anitta mostra a certa altura no clipe não é só sacanagem
ou vulgaridade. Se Anitta decide oferecer seu bumbum para ser cutucado por
dedos masculinos ou feito percussão de forma lúdica, quem vai achar ruim? Os
homens brincaram com seus paus por séculos e erigiram uma cultura falocêntrica,
que se auto homenageia, um paucentrismo, que
produziu “tudo que está aí”.
Deixem as mulheres
brincarem com suas bundas, bucetas etc. E mais: deixem as mulheres ganharem
dinheiro e projeção com seus corpos, no comando da própria monetização de suas
vidas – e não sendo assujeitadas. As mulheres têm que ter o copyright e serem as principais beneficiadas de
séculos de assujeitamento e sexismo.
Essa periferia
global, cultural, potente, dos corpos que falam, do parlamento dos corpos (das
mulheres, dos gays, trans) é o que torna ainda mais intolerável e insuportável
o massacre epidêmico dos corpos negros e periféricos, pela polícia e pelo
Estado, ou o feminicídio, em um país como o Brasil.
Existe uma potência
dos corpos periféricos, negros, femininos, que o funk ostentou, que o rap e o
feminismo negro deslocou, tirou do lugar de “objeto”, numa reviravolta cultural
que explicita o outro lado: o racismo de base da nossa sociedade e as
contradições da cultura pop global brasileira.
Além do funk hipnótico minimalista –
“Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum. Tutudum!” -, Anitta
coloca os homens de coadjuvantes: o incrível funkeiro brasileiro MC Zaac e
o rapper norte-americano Maejor . Ela comanda o
espetáculo pop.
Desde o
início do ano 2000, quando explodiu a produção cultural das periferias em todos
os campos, que certo estranhamento se dá. Quando se vê que, mesmo querendo
entrar no mundo do consumo, das marcas, das comodidades do mundo capitalismo,
parte dos artistas, produtores culturais, ativistas da periferia que ascenderam
socialmente, não querem abrir mão da sua cultura e pertencimento, do seu
território.
Estão aí, no clipe
de Anitta, filmado no Vidigal, os memes culturais da periferia pop e global: a
popozuda com o corpo sendo regado por homens sarados que as servem; o biquíni
de fita isolante da Érika do Bronze (a mulher que monetizou a marquinha de sol!
Isso que é startup!); o pobre-star que pauta os editoriais da moda praia ao
ativismo; a reinvenção do cotidiano que transforma a carroceria de um
caminhão velho em piscina e felicidade; a funkeira negra, gorda e glamourosa,
Jojo Toddynho; a cultura evangélica “Ergo a bandeira da vitória em nome de
Jesus”; as trans, o black power nos corpos e cabelos, as louraças e os meninos
de cabelos descoloridos.
Toda essa cultura
da laje, de uma pobreza potente, inventa mundos, modas, gírias, linguagem,
inventa a sua própria vida. Se hoje o Brasil, associado a corrupção das suas
elites, crise ética, perda de direitos, retrocessos comportamentais, tem outros
horizontes, passa por essa força dos corpos e sujeitos que emergiram das bordas
e podem reinventar a nossa trágica e solar democracia. Os corpos como política.
Anitta e a Teoria
King Kong
Uma outra questão:
Anitta faz parte da emergência de um feminino e feminismo viril! O masculinismo
e a virilidade podem, sim, ser apropriados e transformados pelas mulheres, como
propõe a Teoria King Kong, de Virginie Despentes, o manifesto mais ácido para
um outro feminismo que chuta uma quantidade extraordinária de baldes e lugares
comuns sobre as mulheres e reivindica para si as vantagens inerentes à
masculinidade e à virilidade.
Do que nos diz
Virginie Despentes e que vale para o feminismo viril de Anittas e que
tais eu destacaria:
– “o exercício direto do poder”,
pois espera-se que renunciemos a esse tipo de prazer em função do nosso sexo.
– o direito de
comercializar e negociar nossos “encantos” e explicitar essas relações em
contratos saudáveis e claros entre sexos. “Não precisa nem complicá-lo e nem
culpabilizá-lo”. E aqui Despentes está falando, inclusive, da prostituição como
trabalho digno e todos os demais usos monetizáveis que podemos fazer de nossos
corpos. Como fazem as “minas” do funk!
O desafio é um só:
abandonar a “arte do servilismo” que diz que as mulheres não devem se expor,
não devem falar alto; não devem se expressar em tons categóricos; não devem
sentar com as pernas abertas; não devem se expressar num tom autoritário; não
devem falar de dinheiro; não devem conquistar poder; não devem ocupar um posto
de autoridade; não procurar prestígio; não rir muito alto; não ser muito
engraçada. A lista de “nãos” é infinita!
Por isso é tão
importante as Anittas e as mulheres que estão produzindo um outro imaginário,
mesmo clichês, mesmo questionáveis, mesmo dentro de um campo de consumo. É
possível politizar o pop, o fervo, o funk? Na real, tudo já é político. Estamos
em uma disputa de imaginários.
“O que pode um
corpo?”, Pergunta o filósofo. E o que pode um corpo de uma mulher do funk, o
que podem as mulheres das periferias, as negras e brancas? A mais incrível
batalha não começa na mente, começa nos corpos e pode ser ao som do
hipnótico tutudum.
P.S. Sim, teria
sido mais coerente Anitta ter como diretor do seu clipe outro tipo de homem,
que não Terry Richardson, acusado de assédio e abusos contra mulheres ou ser
dirigida por uma outra mulher. São muitas ainda as contradições e os limites de
um processo em curso.